sábado, fevereiro 18, 2006

DÍLI - VIQUEQUE

No dia 19 de Janeiro, pouco tempo antes da partida para Portugal, fui, por razões profissionais ao Distrito de Viqueque. Nesta viagem, à medida que a paisagem natural nos deslumbra, com os seus vales e montanhas completamente cobertos de verde, a paisagem humana degrada-se ainda mais.
É difícil imaginar que as pessoas do interior são ainda mais pobres. Acontece, que aqui como em qualquer outra parte do mundo, a “pobreza urbana” é diferente da “pobreza rural”. Vi as mesmas gentes, mas vi menos sorrisos; vi as mesmas gentes mas vi rostos calcados pela rudeza de uma vida, ainda mais dura. Calcados, talvez pelo isolamento em vivem. São difíceis as condições de acesso. A ausência de comunicação e de interacção com o exterior, não será alheia a esta nova expressão que descobri o rosto dos timorenses.


As “portagens” de Viqueque

Aqui no país em forma de crocodilo, a natureza dita as regras de forma severa. Na época das chuvas o vento sopra forte, as chuvas são intensas. A rede viária é precária. As estradas são estreitas, os buracos (in)esperados, são muitos; vertentes íngremes, xistosas desmoronam-se, as árvores em equilíbrio precário caem sobre as estradas, ou porque são velhas ou porque são altas de tronco esguio.
A novidade da viagem não foi a chuva. Em Díli também chove. A novidade foi vivenciar uma faceta de alguns timorenses que me surpreendeu! O conforto do jipe, a destreza do motorista, a boa ou má qualidade da estrada…nada disto importa se a estrada estiver cortada pela queda de uma árvore. Este obstáculo obriga-nos a parar. Não podemos continuar. Quando reparo que começam a surgir homens, um grupo de 10 ou 15 homens, armados com catanas, sorrio e penso em palavras como solidariedade e entreajuda; eu própria já estou fora do carro mentalmente pronta para encetar a tarefa. Reparo de imediato que o semblante que reina na face destes homens, não é aquele a que me habituei. Sim, cortam a árvore, mas a troco de dinheiro. Sem dinheiro, não há passagem! Fico apreensiva e um pouco atónita! O ambiente intimida-me. O motorista, um jovem nascido nas montanhas, em 1978, filho de militar importante, habituado a muitas peripécias, ficou também apreensivo. Senti como nunca o significado da palavra vulnerabilidade. Ali estou eu, no meio de nenhures, rodeada por um grupo de homens de catana em punho, a usurparem, a troco de alguns dólares, a minha liberdade. Posso usá-la para dizer: Não! Mas… e se o fizer? Qual será a reacção que vou provocar nestes homens? Nem sei se a opção de voltar para trás, seria prudente. Paguei 5$ para passar. Como devem imaginar, não é o aspecto quantitativo que está em questão. Fosse outra a atitude, teria sido esta ou talvez mesmo mais, a quantia que prontamente lhes pagaria pelo serviço prestado.
Alguns quilómetros depois, outra árvore, outra “portagem”, a mesma atitude! 5$ e continuamos a nossa viagem. No regresso, quando chegámos ao sítio da primeira “portagem”, estavam 2 carros e 1 camião (todos timorenses) em fila esperando, reflectindo ou contando os trocos para efectuar este pagamento. Nós fomos autorizados a passar. Já tínhamos pago. Haja justiça! Mais uns quilómetros, mais uma portagem, mais 5 dólares.
Reflectindo sobre o que aconteceu na primeira portagem e não querendo acreditar que o que “estava a ver” era realmente o que “estava a ver”, quis convencer-me que talvez estivesse a fazer uma má leitura da situação. A viagem de regresso, provou-me o contrário: a árvore foi cortada em grandes pedaços, que foram colocados estrategicamente no centro da via, para obstruir a passagem.
Sei que o que está subjacente a esta atitude é mais grave do que a atitude em si. A verdade é que a situação de precariedade que ali se vive não é diferente da dos outros distritos, onde, felizmente, não existe esta prática.
Ironia dos diferentes níveis de desenvolvimento: no 1º mundo, pagam-se portagens para a manutenção das estradas, aqui pagam-se portagens, quando as estradas ficam intransitáveis.





MAU HUNO (homem da Guerra)

O jovem motorista que me conduziu nesta viagem, tem 28 anos e uma longa experiência. Há quinze anos que conduz; já trabalhou com diversas organizações, desde a AMI à OIKOS…
Os seus primeiros 4 anos de vida, foram passados nas montanhas. Os seus pais sabem exactamente o local do seu nascimento, mas o Venâncio ainda não foi ver o local onde nasceu. Tem onze irmãos; o mais novo tem 16 anos e está a frequentar o 11º ano do Ensino Secundário. O Venâncio é pai de 2 filhos e vem um terceiro a caminho. Diz-me que não pode ter mais filhos, como tiveram os seus pais. Diz-me que a sua mulher vai tomar “comprimido”. -Relembro a importância da religião neste país. A sua mãe tem 58 anos. Cinquenta e oito anos e doze filhos!
Quero acreditar que a geração do Venâncio, vai agir de forma diferente. O “caminho para o desenvolvimento” de que fala o Senhor Primeiro- Ministro Mari Halkatiri, no seu livro, não pode ser feito ao arrepio da questão demográfica! Estima-se que cerca de metade da população timorense tem 15 anos ou menos; cerca de metade da população timorense é analfabeta! Que longo caminho há ainda a percorrer. Será o nosso jovem MAU HUNO – é assim que é conhecido na família, por ter nascido nas montanhas durante a ocupação Indonésia – um exemplo de uma nova mentalidade?

2 Comments:

At 22/2/06 20:32, Anonymous Anónimo said...

Olá São!

Descobri agora este Blog e estou gostar.

Estive aí de Novembro de 1999 a Dezembro de 2002 e revivo nos teus posts os meus tempos de Timor.

Essa mania das portagens começou precisamente em 2002, após a Indepêndencia, quando a vigilância dos militares estrangeiros começou a abrandar. Apanhei um belo susto em Outubro 2002 numa ida a Venilale...

Não sei quanto tempo vais ficar por aí, mas podes ter a certeza que o regresso não vai ser fácil!

Parabéns pelo teu Blog.
Se puderes diz o teu mail.

Rei'n boot ida

jbc

 
At 23/2/06 01:28, Blogger São said...

Olá jbc! Obrigada pelas tuas palavras. Meu mail está no "meu perfil" e sim, "Hau hadomi Timor-Leste"

 

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